sexta-feira, 3 de junho de 2011

MENSAGEM DO PAPA

Mensagem do Papa para o 45º Dia Mundial das Comunicações Sociais

Verdade, anúncio e autenticidade de vida, na era digital


Queridos irmãos e irmãs!

    Por ocasião do XLV Dia Mundial das Comunicações Sociais, desejo partilhar algumas reflexões, motivadas por um fenômeno característico do nosso tempo: a difusão da comunicação através da internet. Vai-se tornando cada vez mais comum a convicção de que, tal como a revolução industrial produziu uma mudança profunda na sociedade através das novidades inseridas no ciclo de produção e na vida dos trabalhadores, também hoje a profunda transformação operada no campo das comunicações guia o fluxo de grandes mudanças culturais e sociais. As novas tecnologias estão a mudar não só o modo de comunicar, mas a própria comunicação em si mesma, podendo-se afirmar que estamos perante uma ampla transformação cultural. Com este modo de difundir informações e conhecimentos, está a nascer uma nova maneira de aprender e pensar, com oportunidades inéditas de estabelecer relações e de construir comunhão.
    Aparecem em perspectiva metas até há pouco tempo impensáveis, que nos deixam maravilhados com as possibilidades oferecidas pelos novos meios e, ao mesmo tempo, impõem de modo cada vez mais premente uma reflexão séria acerca do sentido da comunicação na era digital. Isto é particularmente evidente quando nos confrontamos com as extraordinárias potencialidades da internet e a complexidade das suas aplicações. Como qualquer outro fruto do engenho humano, as novas tecnologias da comunicação pedem para ser postas ao serviço do bem integral da pessoa e da humanidade inteira. Usadas sabiamente, podem contribuir para satisfazer o desejo de sentido, verdade e unidade que permanece a aspiração mais profunda do ser humano.
    No mundo digital, transmitir informações significa com frequência sempre maior inseri-las numa rede social, onde o conhecimento é partilhado no âmbito de intercâmbios pessoais. A distinção clara entre o produtor e o consumidor da informação aparece relativizada, pretendendo a comunicação ser não só uma troca de dados, mas também e cada vez mais uma partilha. Esta dinâmica contribuiu para uma renovada avaliação da comunicação, considerada primariamente como diálogo, intercâmbio, solidariedade e criação de relações positivas. Por outro lado, isto colide com alguns limites típicos da comunicação digital: a parcialidade da interação, a tendência a comunicar só algumas partes do próprio mundo interior, o risco de cair numa espécie de construção da auto-imagem que pode favorecer o narcisismo.
    Sobretudo os jovens estão a viver esta mudança da comunicação, com todas as ansiedades, as contradições e a criatividade própria de quantos se abrem com entusiasmo e curiosidade às novas experiências da vida. O envolvimento cada vez maior no público areópago digital dos chamados social network, leva a estabelecer novas formas de relação interpessoal, influi sobre a percepção de si próprio e por conseguinte, inevitavelmente, coloca a questão não só da justeza do próprio agir, mas também da autenticidade do próprio ser. A presença nestes espaços virtuais pode ser o sinal de uma busca autêntica de encontro pessoal com o outro, se se estiver atento para evitar os seus perigos, como refugiar-se numa espécie de mundo paralelo ou expor-se excessivamente ao mundo virtual. Na busca de partilha, de «amizades», confrontamo-nos com o desafio de ser autênticos, fiéis a si mesmos, sem ceder à ilusão de construir artificialmente o próprio «perfil» público.
    As novas tecnologias permitem que as pessoas se encontrem para além dos confins do espaço e das próprias culturas, inaugurando deste modo todo um novo mundo de potenciais amizades. Esta é uma grande oportunidade, mas exige também uma maior atenção e uma tomada de consciência quanto aos possíveis riscos. Quem é o meu «próximo» neste novo mundo? Existe o perigo de estar menos presente a quantos encontramos na nossa vida diária? Existe o risco de estarmos mais distraídos, porque a nossa atenção é fragmentada e absorvida por um mundo «diferente» daquele onde vivemos? Temos tempo para refletir criticamente sobre as nossas opções e alimentar relações humanas que sejam verdadeiramente profundas e duradouras? É importante nunca esquecer que o contato virtual não pode nem deve substituir o contato humano direto com as pessoas, em todos os níveis da nossa vida.
    Também na era digital, cada um vê-se confrontado com a necessidade de ser pessoa autêntica e reflexiva. Aliás, as dinâmicas próprias dos social network mostram que uma pessoa acaba sempre envolvida naquilo que comunica. Quando as pessoas trocam informações, estão já a partilhar-se a si mesmas, a sua visão do mundo, as suas esperanças, os seus ideais. Segue-se daqui que existe um estilo cristão de presença também no mundo digital: traduz-se numa forma de comunicação honesta e aberta, responsável e respeitadora do outro. Comunicar o Evangelho através dos novos midia significa não só inserir conteúdos declaradamente religiosos nas plataformas dos diversos meios, mas também testemunhar com coerência, no próprio perfil digital e no modo de comunicar, escolhas, preferências, juízos que sejam profundamente coerentes com o Evangelho, mesmo quando não se fala explicitamente dele. Aliás, também no mundo digital, não pode haver anúncio de uma mensagem sem um testemunho coerente por parte de quem anuncia. Nos novos contextos e com as novas formas de expressão, o cristão é chamado de novo a dar resposta a todo aquele que lhe perguntar a razão da esperança que está nele (cf. 1 Pd 3, 15).
    O compromisso por um testemunho do Evangelho na era digital exige que todos estejam particularmente atentos aos aspectos desta mensagem que possam desafiar algumas das lógicas típicas da web. Antes de tudo, devemos estar cientes de que a verdade que procuramos partilhar não extrai o seu valor da sua «popularidade» ou da quantidade de atenção que lhe é dada. Devemos esforçar-nos mais em dá-la conhecer na sua integridade do que em torná-la aceitável, talvez «mitigando-a». Deve tornar-se alimento cotidiano e não atração de um momento. A verdade do Evangelho não é algo que possa ser objeto de consumo ou de fruição superficial, mas dom que requer uma resposta livre. Mesmo se proclamada no espaço virtual da rede, aquela sempre exige ser encarnada no mundo real e dirigida aos rostos concretos dos irmãos e irmãs com quem partilhamos a vida diária. Por isso, permanecem fundamentais as relações humanas diretas na transmissão da fé!
    Em todo o caso, quero convidar os cristãos a unirem-se confiadamente e com criatividade consciente e responsável na rede de relações que a era digital tornou possível; e não simplesmente para satisfazer o desejo de estar presente, mas porque esta rede tornou-se parte integrante da vida humana. A web está a contribuir para o desenvolvimento de formas novas e mais complexas de consciência intelectual e espiritual, de certeza compartilhada. Somos chamados a anunciar, neste campo também, a nossa fé: que Cristo é Deus, o Salvador do homem e da história, Aquele em quem todas as coisas alcançam a sua perfeição (cf. Ef 1, 10). A proclamação do Evangelho requer uma forma respeitosa e discreta de comunicação, que estimula o coração e move a consciência; uma forma que recorda o estilo de Jesus ressuscitado quando Se fez companheiro no caminho dos discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35), que foram gradualmente conduzidos à compreensão do mistério mediante a sua companhia, o diálogo com eles, o fazer vir ao de cima com delicadeza o que havia no coração deles.
    Em última análise, a verdade que é Cristo constitui a resposta plena e autêntica àquele desejo humano de relação, comunhão e sentido que sobressai inclusivamente na participação maciça nos vários social network. Os crentes, testemunhando as suas convicções mais profundas, prestam uma preciosa contribuição para que a web não se torne um instrumento que reduza as pessoas a categorias, que procure manipulá-las emotivamente ou que permita aos poderosos monopolizar a opinião alheia. Pelo contrário, os crentes encorajam todos a manterem vivas as eternas questões do homem, que testemunham o seu desejo de transcendência e o anseio por formas de vida autêntica, digna de ser vivida. Precisamente esta tensão espiritual própria do ser humano é que está por detrás da nossa sede de verdade e comunhão e nos estimula a comunicar com integridade e honestidade.
    Convido sobretudo os jovens a fazerem bom uso da sua presença no areópago digital. Renovo-lhes o convite para o encontro comigo na próxima Jornada Mundial da Juventude em Madri, cuja preparação muito deve às vantagens das novas tecnologias. Para os agentes da comunicação, invoco de Deus, por intercessão do Patrono São Francisco de Sales, a capacidade de sempre desempenharem o seu trabalho com grande consciência e escrupulosa profissionalidade, enquanto a todos envio a minha Bênção Apostólica.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A PALESTINA NO TEMPO DE JESUS

A Palestina no Século I d. C.


Professora Doutora Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva

   O objetivo deste texto é procurar reconstruir, em linhas gerais, como estava organizada política, econômica, social e religiosamente a Palestina no século I d.C., momento em que Jesus nasceu e o Novo Testamento foi escrito. Compreendemos que quanto mais conhecermos o cotidiano palestinense neste período, será mais fácil avaliar o impacto da mensagem cristã.
   A Palestina é uma estreita área situada entre a África e a Ásia, funcionando como uma espécie de ponte entre estas regiões. Com um território menor que o nosso estado do Espírito Santo, possuía uma superfície de 34.000 Km2 e cerca de 650 mil habitantes. Encontrava-se dividida em áreas menores: Judéia, Samaria e Galiléia, à oeste; Ituréia, ao norte; Gualanítade, Batanéia, Traconítide, Auranítide, Decápole e Peréia, à leste e Iduméia ao sul. Vamos centrar nas regiões situadas à oeste, já que a maior parte dos fatos referentes a vida de Jesus ocorreram neste cenário.

Quadro político e administrativo

   A Palestina, durante as vidas de Jesus e de Paulo, foi governada, principalmente, pela Dinastia Herodiana. Contudo, este quadro não é tão simples, já que esta região estava subdividida em outras que, neste período, possuíram formas de governo e administração distintas.
   Como sabemos, em 63 a.C. Roma conquistou a Palestina, aproveitando a fragilidade da dinastia asmonéia em crises internas. Hircano, um dos descendentes de Simão Macabeu, foi recolocado ao trono por Júlio César, que institui a Antípatro, ou Antípater, natural da Induméia, como seu procurador. Foi um dos filhos de Antípatro, Herodes, que acabou por fundar a nova dinastia judaica, a dos herodianos, e manter a região independente por mais algum tempo.
   Herodes governou entre 37 a 4 a.C. os territórios da Judéia, Samaria, Induméia, Galiléia e Peréia. Estas áreas foram divididas entre seus filhos após a sua morte: Herodes Arquelau herdou a Judéia, Samaria e a Induméia, que governou até 4 d.C. e Herodes Antipas, as regiões da Galiléia e Peréia, de 4 a.C. - 39 d.C.. Este último é, dentre os soberano herodianos, o mais citado no Novo Testamento (Cf. Lc. 3:1; 9:7-9; 13: 31-32; 23: 7-12; Mt. 14: 1-12).
   De 6 até 41 d.C, a Judéia, Samaria e a Induméia passaram a ser administradas diretamente por procuradores romanos. Agripa I, neto de Herodes, governou esta região entre 41 a 44 d.C. Após este período, a administração voltou para as mãos dos procuradores romanos.
   Os procuradores eram funcionários diretamente ligados ao imperador. Sob este título eram denominados diversos funcionários que possuíam atribuições diferentes. Eles provinham da ordem eqüestre, ou dos cavaleiros, e eram remunerados. Os procuradores palestinos estavam subordinados ao governador da Síria. Entretanto, como representantes diretos do Imperador, detinham poderes civis, militares e jurídicos. Eles residiam em Cesaréia, mas em épocas de festa religiosas se transferiram para Jerusalém, já que, nestas ocasiões, esta ficava apunhada de fiéis.
   Faz-se importante ressaltar que as questões internas da comunidade judaica, contudo, mesmo sob a administração romana, eram resolvidas pelo Sinédrio, tribunal presidido pelo sumo-sacerdote e formado por 71 membros (anciões, sumo-sacerdotes depostos, sacerdotes do partido dos saduceus e escribas fariseus), com sede em Jerusalém. Provavelmente instituído ainda no século III aC, no século I dC possuíam atribuições jurídicas: julgavam os crimes contra a Lei Mosaica, fixavam a doutrina e controlavam todos os aspectos da vida religiosa. Em todas as cidades e vilas da Palestina também existiam pequenos sinédrios formados por três membros que cuidavam de questões locais (Mt. 5:25).
   Ainda que Roma tenha procurado manter as estruturas locais anteriores à conquista e tenha respeitado a idiossincrasia judaica no tocante à diversos aspectos (cf. Estudo 1), a dominação romana implicou na progressiva romanização e helenização e na cobrança de inúmeros impostos diretos e indiretos.
   Neste sentido, face a irreversível ocupação romana na região, surgiram movimentos de resistência armados, como os zelotas. Historiadores, como Flávio Josefo, e o próprio Novo Testamento apresentam indícios de que ocorreram, no período, alguns levantes pontuais contra Roma (Lc. 13;1; At. 5: 36-37, 21:37).
   Pouco a pouco grandes parcelas da população foram mobilizadas contra o controle romano, o que resultou no embate militar que durou de 66 a 70 dC e é conhecido como Guerra Judaica. Foi no decurso desta guerra que o Templo de Jerusalém foi novamente destruído e levaram que a política tolerante de Roma em relação aos judeus fosse revista.
   Estes acontecimentos marcaram profundamente a judeus e cristãos. Seus reflexos encontram nos textos neotestamentários e foram um fator decisivo no rompimento definitivo entre judeus e cristãos. Com a destruição do Templo, cessaram os sacrifícios. O culto nas sinagogas ganharam importância, sendo dirigidos pelos Rabis fariseus. A Judéia tornou-se província romana, na qual se encontravam duas legiões estacionadas. Contudo, as revoltas não cessaram.
   Em 132 a Palestina torna-se palco de nova revolta, agora liderada pelo judeu Simão Bar-Kosba. Esta insurreição resultou numa acentuada baixa demográfica na Palestina. Jerusalém foi destruída e reconstruída como colônia romana, ou seja, ali foram fixados soldados aposentados de diversas origens. Os judeus foram proibidos de entrar na cidade. No local do Templo foi construído um templo pagão.

Organização econômica
   Devido a sua posição estratégica, a palestina era uma região de passagem. Por ela circulavam soldados, comerciantes, mensageiros, diplomatas, etc. Esta região possuía importantes centros urbanos, como Cesaréia e Jerusalém, que concentravam pessoas e atividades econômicas. Como em outras áreas do Império, nesta região existiam vias e portos, que facilitavam as comunicações e transporte de mercadorias e pessoas.
   Existia, na região, uma incipiente manufatura, especializada na defumação ou salgação de peixes, construção, fiação e tecelagem, produção de artigos em couro, cerâmica, além de um artesanato de produtos de luxo, como perfumes e a extração e tratamento do betume, substância utilizada para a calafetagem dos navios. Além disso, outros ofícios se faziam presentes, principalmente nas grandes cidades, tais como os padeiros, carregadores de água, barbeiros etc.
   O comércio, tanto interno quanto externo, também era praticado. O comércio interno, pouco conhecido, consistia-se nas trocas locais e, sobretudo, visava o abastecimento das grandes cidades. Quanto ao externo, importava-se produtos de luxo, consumidos pelas elites e pelo Templo. Por outro lado, exportavam-se alimentos – frutas, óleo, vinho, peixes – e manufaturas, como perfumes, além do betume.
   A principal atividade econômica da região, contudo, era a agricultura. Plantava-se trigo, cevada, figo, azeitonas, uvas, tâmaras, romãs, maçãs, nozes, lentilhas, ervilhas, alface, chicória, agrião etc. Além da plantação de alimentos, eram encontrados cultivos especiais, voltados para a produção de manufaturas, como rosas, para a produção de essências para os perfumes.
   As atividades de pesca, pecuária e extrativismo também não podem ser esquecidas, devido a sua grande importância econômica. Banhada pelo Mediterrâneo, cortada por rios e possuindo lagos, não é difícil constatar a variedade de peixes e seu papel para o abastecimento interno e até exportação. Quanto a pecuária, a região possuía rebanhos de ovelhas, cordeiros e bois. No campo da extração, além do já mencionado betume, há que ressaltar a variedade de árvores, como o salgueiro, loureiro, pinheiros, das quais se extraía madeira, temperos e essências; certos animais, como pombas; e alimentos, como o mel.

Organização Social
   A sociedade palestinense pode ser dividida em quatro grandes grupos socioeconômicos: os ricos, grandes proprietários, comerciantes ou elementos provenientes do alto clero; os grupos médios, sacerdotes, pequenos e médios proprietários rurais ou comerciantes; os pobres, trabalhadores em geral, seja no campo ou nas cidades; e os miseráveis, mendigos, escravos ou excluídos sociais, como ladrões.
   Contudo, as diferenças sociais na palestina não se pautavam somente na riqueza ou pobreza do indivíduo, mas em diversos outros critérios, como sexo, função religiosa, conhecimento, pureza étnica, etc. Ou seja, uma mulher, ainda que proveniente de uma família rica, estava numa situação social inferior a de um levita; um samaritano, apesar de ser descendente dos israelitas, devido à miscigenação, era considerado impuro e, socialmente, inferior a uma mulher judia, para citar só dois exemplos.

Instituições religiosas
   O Templo foi, até 70 dC, o mais importante centro religioso judaico. Destruído duas vezes, estava sendo reconstruído neste período. As mulheres e os não circuncidados não podiam entrar no interior do Templo. Neste edifício eram realizados os sacrifícios; o sinédrio se reunia; eram armazenadas as riquezas e impostos dirigidos ao Templo, bem como os objetos de culto. Ou seja, o Templo era muito mais do que um local de culto. Sobretudo, era o centro de toda a vida religiosa, econômica e política judaica. Suas atividades e organização revelam os valores e as divisões desta sociedade, onde os sacerdotes e conhecedores da Lei possuem privilégios, só os homens circuncidados são levados em conta e mulheres e gentios são colocados à margem.
   Organizando a vida religiosa e os cultos no templo existiam um amplo clero chefiado pelo sumo-sacerdote, que provinham das famílias mais ricas judaicas da palestina. Os sacerdotes, tanto sob o governo dos herodianos quanto dos procuradores, eram escolhidos e destituídos pelos governadores civis. Logo, este posto possuía um marcado caráter político.
   O sumo-sacerdote era auxiliado por diversos funcionários, todos provenientes das famílias mais importantes: o comandante do Templo; os chefes das 24 equipes semanais, os sete vigilantes, três tesoureiros.
   Além do sacerdote supremo, existiam cerca de 7 mil outros sacerdotes divididos em 24 equipes que se revezavam nos serviços do Templo. Em média, cada sacerdote atuava cinco vezes por ano. Recebiam salário, que provinha dos sacrifícios e do dízimo. A função sacerdotal era hereditária. Ao lado dos sacerdotes, haviam 10 mil levitas, também organizados e 24 equipes. Atuavam como músicos ou porteiros, também cinco vezes ao ano. Não recebiam salários.
   As sinagogas também eram centros religiosos, já que nelas se cultuava a Deus e era estudada a Lei, tal como ocorre ainda hoje. Nelas, qualquer judeu poderia ler e fazer comentários à Lei, o que não ocorria na prática, função que acabava controlada pelos especialistas nas escrituras, os escribas e rabis farisaicos.
   As festas religiosas também possuíam um papel destacado na vida judaica. Nestas ocasiões o povo se reunia em Jerusalém e celebrava a intervenção divina em sua História. Mais do que um momento de comemoração, tais datas serviam para perpetuar a memória e as tradições do povo. Três festas eram consideradas mais importantes: a Páscoa, que recordava a libertação da escravidão no Egito; Pentecostes que ocorria na época da colheita e recordava a Aliança do Sinai; Tendas, que festeja o próprio Templo.
   Outras práticas religiosas judaicas comuns no século I dC eram a circuncisão, a guarda do Sábado, a oração cotidiana, realizada pela manhã e à tarde. Contudo, apesar de uma aparente unidade, o Judaísmo estava subdividido em uma série de facções político-religiosas, que apresentaremos no próximo item.

O Judaísmo no século I
   Muitas pessoas pensam no judaísmo do século I dC como um bloco monolítico, uma religião solidamente unificada que o cristianismo dividiu, formando uma religião nova. Entretanto, haviam muitos subgrupos diferentes dentro de judaísmo antigo e o movimento de Jesus era, à princípio, só um deles. Assim, a separação do cristianismo do judaísmo não foi súbita, mas aconteceu gradualmente.
   O Judaísmo no tempo de Jesus parecia muito com as divisões internas do cristianismo de hoje. Todos os judeus tinham certas crenças comuns e praticaram alguns aspectos da religião: eram monoteístas, praticavam a lei de Moisés, circuncidavam-se, etc. Porém, os diferentes grupos judeus debatiam e discordavam entre si sobre muitos detalhes, tais como as expectativas sobre o Messias, os rituais e as leis de pureza, sobre como viver sob a dominação estrangeira.
   Para entendermos o Novo Testamento mais completamente, especialmente como a vida de Jesus é apresentada nos Evangelhos, nós precisamos conhecer a variedade dos grupos judeus que existiram no primeiro século.
   Josefo, historiador judeu do primeiro-século, descreve três grupos principais com suas filosofias ou modos de vida: os fariseus , Saduceus, e Essênios. Ele também menciona vários outros grupos políticos e revolucionários judeus ativos no primeiro século d.C., especialmente durante a primeira Guerra contra Roma (66-70 d. C.). O Novo Testamento menciona os Fariseus e Saduceus, além de vários outros grupos identificáveis a partir da pequenas menções. São estas informações que nos permitem reconstruir tais partidos político-religiosos. A seguir, vamos apresentar os principais grupos e suas características:

1- Fariseus
   Os fariseus formavam um grupo ativo, numeroso e influente na Palestina desde o século II a.C.. O termo Fariseu provavelmente significa, em hebreu, separado e se refere à observância rígida das leis e tradições por parte dos membros do grupo (Lc. 18:10-12). Seus líderes eram chamados de rabinos ou professores, tal como Gamaliel, já que se dedicavam a estudar e comentar as escrituras (Atos 5:34; 22:3).
   Os Fariseus aderiram e defendiam a observância rígida do sábado sagrado, dos rituais de pureza, do dízimo, das restrições alimentares, baseando-se nas Escrituras hebraicas e em tradições orais mais recentes (Mc. 7:1-13; Mt. 15:1-20). Se opunham à romanização e à helenização. Seus maiores rivais políticos e religiosos foram, durante muito tempo, os Saduceus, principalmente devido a postura pró-roma deste grupo. Esta rivalidade, contudo, não os impedia de unirem-se em alguns momentos em que os objetivos faziam-se comuns.
   Em sua maioria, os fariseus eram leigos, ainda que entre eles fossem encontrados alguns levitas e membros do Sinédrio (Atos 5:34). Consideravam-se sucessores de Esdras e dos primeiros escribas. Eram os freqüentadores das sinagogas e buscavam divulgar a interpretação da Lei escrita e oral.
   Em contraste com os Saduceus (Mc. 12:18-27), os Fariseus acreditavam na ressurreição dos mortos, no livre arbítrio do homem, na onipresença de Deus, no papel da Lei como um freio para os impulsos negativos dos homens (Atos 23:1-8). Os Evangelhos os retratam como os principais oponentes de Jesus (Mc. 8:11; 10:2) e que teriam conspirado junto com os herodianos para matá-lo (Mc. 3:6). Por outro lado, Jesus dirige algumas críticas severas contra a hipocrisia e cegueira do Fariseus (Mt. 23; Jo. 9). Contudo, em termos teológicos, cristãos e fariseus concordavam em alguns aspectos, o que explica o grande número de fariseus que acabaram por tornar-se cristãos (Atos 15:5). Paulo, antes de converter-se ao cristianismo, era um fariseu (Fil. 3:5; Atos 23:6; 26:5).
   Mesmo após a Guerra Judaica, os fariseus permaneceram ativos. Como, dentre as seitas de então, não foi eliminado, passou a dirigir o Judaísmo e a rivalizar com os cristãos.

2- Saduceus
   Os saduceus formavam outro grupo proeminente de judeus na Palestina entre os séculos II a.C. ao I d.C. . Não se sabe ao certo a origem da palavra Saduceus. Alguns crêem que vem do hebreu saddiqim, que significa íntegro ou derivado de Zadok, nome do mais importante sacerdote durante o reinado de Davi (1 Reis 1:26). Organizaram-se no período da dinastia asmonéia, momento de prosperidade política e econômica. Eles eram um grupo formado pela elite, principalmente proveniente das famílias da alta hierarquia sacerdotal. Provavelmente era menor, mas mais influente que os Fariseus. Sua influência, porém, era sentida sobretudo entre os grupos governantes ricos.
   Seguiam somente as leis escritas, presentes na Bíblia hebraica (a Torah), e rejeitavam as tradições mais novas. não acreditavam em vida depois de morte (Mc. 12:18-27; C. 20:27); em anjos ou espíritos (Atos 23:8) ena Providência Divina. Eram altamente ritualistas e só aceitavam os cultos realizados no Templo onde, acreditavam, Deus estava. Possuíam um papel preponderante no Sinédrio e controlavam as atividades e riquezas do Templo (Atos 4:1; 5:17; 23:6).
   Rejeitaram os ensinos do Fariseus, especialmente as tradições orais e as tradições mais novas. Além dos fariseus, rivalizavam com os Herodianos, porém, eram simpáticos à romanização e à helenização. Os Evangelhos os retratam freqüentemente junto com o Fariseus como oponentes de Jesus (Mt. 16:1-12; Mc. 18:12-27). Com a destruição do templo e a efetivo domínio romano, esta seita acabou por desaparecer.

3- Essênios
   Os essênios formavam um grupo minoritário que estava organizado como uma comunidade monástica em Qumram, área localizada perto do Mar Morto, desde o século II a.C. até o século I d.C, quando em 68 foram eliminados pelos romanos durante a Guerra Judaica. Alguns crêem que o nome essênios deriva do grego hosios, santo, ou isos, igual, ou ainda do hebraico hasidim, piedoso. Ou seja, não há consenso. Sua origem pode estar associada à era macabéia, quando um grupo, liderado por um sacerdote, teria fundado a comunidade. Eles rejeitaram a validez da adoração de Templo, e assim recusavam-se a assistir os festivais ou apoiar o Templo de Jerusalém. Eles consideraram os sacerdotes de Jerusalém ilegítimos, desde que não fossem Zadokites, ou seja, descentes de Zadok, dos quais eles próprios se viam como descendentes.
   Eles viviam em regime comunitário com exigências rígidas, regras, e rituais. Provavelmente também praticavam o celibato. Esperaram que Deus enviasse um grande profeta e dois Messias diferentes, um rei e um sacerdote. O objetivo dos essênios era manterem-se puros e observar a lei. Praticavam um culto espiritualizado e sem sacrifícios e possuíam uma teologia de caráter escatológico. Dentre os ritos observados, estava a prática do batismo por imersão periódico, como forma de purificação. Eles interpretavam a Lei de forma literal e produziram diversos textos que foram considerados, posteriormente, apócrifos, como a Regra da Comunidade.
   Os essênios não são mencionados no Novo Testamento. Contudo, alguns estudiosos pensam que João Batista e o próprio Jesus estavam associados a este grupo, mas uma conexão direta é improvável.

4- Herodianos
   Os herodianos formaram a facção que apoiou a política e o governo da família dos Herodianos, especialmente durante o reinado de Herodes Antipas, que governou a Galiléia e Peréia durante as vidas de João Batista e de Jesus.
   No Novo Testamento são mencionados só duas vezes em Marcos e uma vez em Mateus. Em Marcos 3:6, como já assinalamos, eles conspiram com os Fariseus para matar Jesus, quando este iniciava o seu ministério na Galiléia. Em Marcos 12:13-17 e Mateus 22:16 eles figuram, novamente unidos a alguns Fariseus, tentando apanhar Jesus com uma pergunta sobre o pagamento de impostos ao César. Alguns autores acreditam que as referências neotestamentárias aos amigos e funcionários do tribunal de Herodes também estão relacionadas aos herodianos (Mc. 6:21, 26; Mt. 14:1-12; 23:7-12). Esta seita desapareceu com o efetivo domínio romano na região palestina.

5- Zelotes
   Os zelotes eram um grupo religioso com marcado caráter militarista e revolucionário que se organizou no I século d.C. opondo-se a ocupação romana de Israel. Também foram conhecidos como sicários, devido ao punhal que levavam escondido e com o qual atacavam aos inimigos.
   Seus adeptos provinham das camadas mais pobres da sociedade. À princípio, foram confundidos com ladrões. Atuaram primeiro na Galiléia, mas durante a Guerra Judaica tiveram um papel ativo na Judéia.
   Os zelotes se recusavam a reconhecer o domínio romano. Respeitavam o Templo e a Lei. Opunham-se ao helenismo. Professavam um messianismo radical e só acreditavam em um governo teocrático, ocupado por judeus. Viam na luta armada o único caminho para enfrentar aos inimigos e acelerar a instauração do Reino de Deus.
   Um de discípulos de Jesus é chamado de Simão, o Zelote em Lucas 6:15 e Atos 1:13. Alguns autores apontam que ele poderia ter pertencido a um grupo revolucionário antes de se unir a Jesus, mas o sentido mais provável era de " zeloso " na sua acepção mais antiga.

6- Outros grupos
   Além dos grupos político-religiosos aqui representados, não podemos deixar de mencionar os outros segmentos que participavam do cenário religiosos judaico no I século: os levitas, como vimos no estudo anterior, que formavam o clero do Templo de Jerusalém e que eram os responsáveis pelos sacrifícios e pelos cultos; os escribas, hábeis conhecedores e comentadores da Lei; os movimentos batistas, seitas populares que mantinham as práticas de batismo de João Batista, dentre outros.
   Quando Jesus Cristo iniciou sua pregação foi visto como mais um dentre os diversos grupos que já possuíam interpretações próprias da lei. Contudo, a mensagem de Cristo mostrou-se revolucionária, chegando a formar uma nova religião. Jesus soube colocar o homem acima da Lei e das tradições e proclamou que qualquer mudança só poderia se iniciar a partir do coração do homem que, pela fé em seu sacrifício salvador, era restaurado.

Conclusão
   A Palestina no século I dC era um grande mosaico de povos e costumes. Dominados por Roma, os judeus, maioria da população, acabaram por revoltarem-se, o que redundou no efetivo domínio romano. Área produtiva, a maior riqueza da região, contudo, era a sua privilegiada posição estratégica. Cada vez mais influenciada pela cultura romano-helenística, o judaísmo resistia, mantendo suas práticas e instituições, mesmo que excluindo a alguns grupos. Ao final do século I, com a Guerra Judaica e a extinção da grande maioria das seitas judaicas, o judaísmo acabou por gerar uma religião autônoma, o cristianismo, e a passar por um processo de cristalização farisaica.