segunda-feira, 8 de agosto de 2011

RELATO DE UM PADRE

    Fiquei muito comovido, pregando retiro dos padres de uma diocese. No encerramento, na celebração eucarística, dei a palavra ao sacerdote mais idoso, 83 anos, um holandês alto, quase dois metros, 53 anos de sacerdócio, trabalhando em vários lugares do Brasil há muitos anos. Depois dei a palavra ao sacerdote mais novo, que tinha somente nove meses de sacerdócio, para que pudessem dizer uma palavra de incentivo a todos os irmãos no sacerdócio. O retiro é sempre um momento muito importante para entrar dentro de nós mesmos e nos olhar, ver o que nós somos, contemplar, com muita saudade, o que deveríamos ser e sonhar com o que gostaríamos ainda de ser.
    Ser sacerdote num mundo globalizado, cheio de imprevistos, de incertezas e inseguranças, numa identidade sacerdotal nem sempre clara e numa missão conflitiva e exigente, pode colocar medo em muita gente. Aos mais corajosos, as dificuldades desafiam e convidam a tomar cada vez mais consciência do valor do sacerdócio que, como tesouro, carregamos num vaso de argila, e todo cuidado é pouco para que o vaso não se quebre. Ser sacerdote sempre será uma aventura de fé, de amor e esperança. É Jesus Cristo, que tendo entrado na vida não pode mais sair, que nos impulsiona a sermos profetas, missionários, anunciadores dos valores do Reino que somente será capaz de criar uma sociedade nova e um mundo que o ódio, a ganância e o egoísmo não poderão ter direito de existir.
    Ser sacerdote de qualquer “jeito” sempre foi fácil; afinal, é uma vida confortável e cômoda, mas ser sacerdote segundo o coração de Cristo, ser bom pastor, como os profetas sonham e o Cristo realiza plenamente, é sempre exigente e obriga a sair de si mesmo para tomar a cruz do Senhor Jesus e caminhar de cabeça erguida. O sacerdote deve ter a certeza que é um “cordeiro” enviado no meio de lobos e não pode dar tréguas aos lobos que tentam arrebatar, estraçalhar, ferir e destruir o rebanho. Ele sabe que a sorte do rebanho será também a sua, que a morte de Cristo, bom pastor, na cruz será também a sua.
    O jovem sacerdote, com apenas nove meses de sacerdócio, estava espalhando ao seu redor o perfume do crisma com que o bispo havia ungido há pouco as suas mãos, trazia o forte entusiasmo da utopia de modificar o mundo, e percebia o desejo – que o deixava inquieto – de como se sacerdote no mundo globalizado. Estava chegando do encontro dos presbíteros, cujo tema era próprio: “O sacerdote na globalização”. Pedia aos co-irmãos de sacerdócio que o ajudassem a viver o seu sacerdócio, pois tinha muita vontade de realizar grandes coisas e ser uma pessoa capaz de evangelizar o mundo, ser profeta missionário. Um testemunho bonito, capaz de reanimar qualquer sacerdote em crise ou com muitas cinzas depositadas sobre o seu sacerdócio pelas desilusões da vida. Ele, padre Renato, jovem sacerdote, conseguiu passar a mensagem do entusiasmo sacerdotal.
    Depois dele, o padre André, o mais velho do presbitério, com a simplicidade e a ousadia de Agostinho nas suas “Confissões”, ou de Paulo que reconhece ter sido perseguidor de Jesus Cristo, disse que, aos 83 anos de vida e 53 de sacerdócio, se sentia muito feliz, mas que já havia pensado em deixar o sacerdócio nos anos depois do Concílio Vaticano segundo, quando se sentiu decepcionado com tudo e com todos e não viu mais sentido na sua vida. Havia vivido uma grande crise, mas conseguiu superá-la graças a quatro coisas que sempre o acompanharam na sua vida e lhe deram força e coragem em todos os momentos difíceis de sua caminhada. Falava com uma voz serena, tranqüila, como de alguém que já olhava o passado com uma paz interior muito grande.

1 – Um amor muito grande a Jesus Cristo crucificado.
Tantas vezes nos momentos difíceis pegava nas suas missas o crucifixo e contemplava a Jesus crucificado por amor, que, pela paixão e morte, chegou à ressurreição. Não poderia existir a alegria da Páscoa, a felicidade da vida sem ser crucificado. E nesse pensamento de comunhão com o Cristo crucificado, encontrou força para não deixar o sacerdócio. Assumindo-o com a crucifixão com Cristo em todos os momentos da vida.

2 – O amor a Nossa Senhora.
Seja lá qual fosse a crise que estivesse passando, nunca deixou de rezar o terço que aprendeu com sua mãe lá na Holanda. E percebeu que esta oração lhe comunicava força e coragem nos momentos difíceis e que, em Maria sempre encontrou uma presença materna. Dizendo isso, ele mostrava, com orgulho e amor, o seu terço para todos os sacerdotes presentes e convidava a todos a rezarem-nos todos os dias.

3 – O que me fez desistir de abandonar o sacerdócio foi pensar em tantas pessoas que, durante esse tempo eu ajudei a recuperar o sentido da vida e evitando que várias se suicidassem - e que matassem outras -, o amor à família, quando ajudei a evitar separações através, principalmente, da participação nos muitos Cursilhos... Pensar que havia ajudado a muitos a recuperar a dignidade humana foi, para mim, uma força muito grande para continuar firme ao meu sacerdócio.

4 – O pensamento de minha mãe de quando entrei no seminário na Holanda, e nós éramos uma família pobre, que para custear os meus estudos e seminário, aprendeu a trabalhar e se tornou parteira, que no norte do país, dizia ela, se chama “curiosa”, e com o pouco dinheiro que ganhava, indo à noite lá quando os médicos não iam, ela manteve meus estudos, e a maior felicidade dela foi me ver um dia sacerdote. Por todos esses motivos, dizia o padre André, com a voz um pouco frágil e comovida e os olhos embaçados com lágrimas, eu decidi não abandonar o sacerdócio, mas continuar fiel ao amor a Jesus crucificado, que eu escolhi conscientemente.

    Esse testemunho do padre André foi muito mais retiro que as minhas palestras. Voltei para casa edificado, fortalecido e muito mais convencido de que, sem o amor a Jesus crucificado e o amor a Maria, a memória do bem feito aos outros através da nossa doação de vida se perderá e nunca poderemos ser fiéis ao nosso sacerdócio. Convencido ainda estou de que nós, os padres, precisamos muito de orações. O exemplo de padre André é um testemunho que não se pode perder e, por isso, quero me lembrar dele todas as vezes que pregar um retiro ao clero. Ou todas as vezes que Deus me colocar no caminho de um sacerdote desanimado. Sei que o desânimo pode um dia bater à porta do meu sacerdócio, mas no amor de Cristo crucificado e no amor de Maria posso me reerguer e continuar feliz. Obrigado, padre André!

Fonte: Publicado no Jornal de Opiniões – Ideias, edição de 19 a 25 de abril de 2004.

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